Midnight Gospel e eu me olhando
Midnight Gospel da Netflix é a versão animada do podcast The Family Hour, apresentado por Duncan Trussell, em que os temas das entrevistas circulam entre religiosidade, espiritualidade, o perdão, o nada, uso de drogas e a morte.
Este último é tema presente em todos os episódios.
Digo, sem medo de errar, que esta é uma série difícil de rotular e que muitos adultos terão dificuldades em entender (ou se conectar?), caso não tenham alcançado a intenção de se compreender.
Nem que um pouco.
Afinal é muito mais fácil definir a série como um desenho animado complicado e esquisito feito por um doidão de ácido, como li em algumas críticas apressadas e cruas.
Percebo que Midnight Gospel é muito mais que isso.
Esta é uma série madura.
A história
A história gira em torno de Clancy que é apresentador de um “espaçocast”, de mesmo nome da série.
Dublado por Trussell, Clancy visita vários mundos através do seu simulador de mundos de segunda mão (apelidado por mim de “xoxotão”) que simboliza nada mais que a volta às origens, o lugar de onde viemos.
Porém estes mundos estão à beira da destruição e o objetivo sempre é entrevistar alguém que habite estes lugares e compreender quem são e o que fazem.
Sintetizando Clancy é um colecionador de histórias, de sapatos descolados e de experiências de morte.
Para uma pergunta ali me foi dada a resposta
O episódio 5 dessa série me foi apresentado por um amigo como a resposta a uma pergunta que eu havia feito a ele:
“Assista uma, duas, três vezes e lá vai achar sua resposta. Ah! E depois assista aos outros episódios com calma e mais de uma vez cada”.
Não somente achei a resposta como achei várias outras respostas para tantas outras questões e continuo achando complementos e direcionamentos toda vez que assisto.
E a cada vez que assisto percebo algo na rica simbologia ou no texto livre de amarras e cheio de desconstruções protagonizado nas percepções do personagem principal e de seus entrevistados.
Clancy/Trussell é o antimestre, é aquele que se abre (e se expõe bravamente) como em uma sessão de terapia aberta ao público, com todas suas fraquezas e cicatrizes expostas.
E chega através de seus entrevistados a conclusão (dentre várias no decorrer da série) de que resistir a dor só aumenta a intensidade e perpetua essa mesma dor.
Afinal ao que se resiste, persiste.
Mas nada ali é aleatório
Num mesmo ambiente colorido e cheio de simbologias vemos o entrevistador se abrir ao entrevistado, entregar suas falhas e vícios de mão beijada, mostrando, compreendendo e aprendendo pelo exemplo seja ele negativo ou positivo.
Clancy/Trussell não se coloca em um pedestal, na verdade ele passa todos os episódios seguindo seus entrevistados viajando de maneira literal e também figurada pelas divagações e devaneios das conversas.
Estas que podem ser conversas espirituais, existenciais e na maioria das vezes em primeira pessoa e mostrando seus exemplos sem medo ou vergonha de se expor.
Clancy questiona a realidade
E assim pavimenta o seu caminho para a sua própria espiritualidade e para isso ele volta a sua origem, ao xoxotão.
O que ao personagem parece uma fuga da sua realidade acaba sempre se tornando mais um passo dado para remodelar e redirecionar seu caminho.
Ele desconstrói as visões que temos da morte e dali cria alternativas que amenizam esta dor que é inevitável, porém amenizada como é demonstrado e sugerido através da aceitação.
Sem spoilers
O apocalipse zumbi no primeiro episódio, assim como o diálogo com a morte no episódio 7 ou no emocionante bate papo de Duncan/Clancy com sua mãe no episódio final nos mostra que se deixar levar e aceitar a dor não faz com que ela seja menos dolorosa e sim que deixemos que seja parte dos ciclos a que todos nós estamos sujeitos.
Não resistir e aceitar nossas limitações.
Não resistir e aceitar o vazio.
Não resistir à vida.
Dói mas passa.
E assim entendermos que não temos controle sobre ela, afinal quem busca a vida precisa entender a morte e associá-la aos recomeços que sempre cruzam nosso caminho.
Sincronicidade em Midnight Gospel
A sincronicidade nos diálogos é sedutora, por mais que a avalanche de cores, imagens e símbolos nos tire do rumo muitas vezes e por isso me foi sugerido assistir por diversas vezes.
Nos mostra também que prestar atenção aos detalhes por menores que sejam é o que nos conecta ao nosso próprio mundo.
Ou ao presente que tanto fazemos questão de ignorar quando nos lamentamos pelo passado ou quando focamos em nossas ansiedades do futuro.
Nenhuma série, filme ou livro me mostrou tanto do quanto eu precisava enxergar quanto Midnight Gospel nesse período de reclusão pandêmica.
No meu caso o timing foi perfeito.
E o já citado quinto episódio
É aquele que me deu as várias respostas filosóficas que eu procurava.
E me ajudou a lamber as próprias feridas e a perceber as várias camadas da minha própria realidade.
E isso tudo, naturalmente.
Sem atitudes desmedidas.
Este é o episódio da prisão das almas rebeldes, aquelas furiosas com seu próprio medo existencial e que não entendem que se colocam em uma armadilha toda vez que fazem força ou agem furiosamente para alcançar algo.
E assim caçam o próprio rabo sem sair do lugar na maioria das vezes.
Neste episódio vemos que todo caminho começa e termina dentro de si mesmo:
A diferença é que alguns de nós conseguem enxergar este movimento, outros tantos fazem força para não ver e ainda temos aqueles que se apegam a esperança como um ponto perdido no horizonte.
Ponto esse que nunca chega.
Buscando o entendimento de que não posso controlar tudo ao meu redor
E que deixar fluir sem esperar nada são alguns dos ensinamentos que ali encontrei e que falaram diretamente ao meu propósito pessoal.
Assim como mudar faz parte da natureza, que nadar contra essa maré não me tira do lugar e talvez a vida seja um eterno renascer, renascer e renascer de novo.
E desse modo, tentar observar a morte como algo bom.
Como uma chance de me refazer, de me reconstruir, de ser outro dentre tantos que possa ser.
E assim se apresentaram inúmeras questões martelando na cabeça:
Do quê adianta renascer sem me reinventar?
Como esperar resultados diferentes se as ações são as mesmas?
Por que me obrigo a ser quem nunca quis ser?
Será que estamos desde o nascimento em uma prisão das almas rebeldes?
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Ainda não tinha lido nada sobre esta Animação, mas é bem interessante perceber o nível de questionamentos filosóficos nela presentes. É o exato contexto de produção que me atrai neste exato momento do meu arrastar de ossos.
Como esperar resultados diferentes se as ações são as mesmas?
Por que me obrigo a ser quem nunca quis ser?
Boas frases para refletir.
Parece que a vida testa nossa fidelidade constantemente. Não fidelidade a ela, mas a nós mesmos.